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PREFÁCIO
Se me perguntarem: “Você acredita em fadas?” – eu só posso
responder que acredito em Dora Van Gelder, o que equivale a uma afirmativa,
baseada no princípio de que as coisas iguais às mesmas coisas são iguais entre
si. Pois ela é Ariel, ela é Puck, ela é “um espírito e, no entanto, é também
uma mulher”. Quase sempre, enquanto a ouço falar sobre fadas, minha
inteligência puramente racional,
medida-padrão nesta parte tridimensional do mundo, parece que me
abandona, pois é inadequada para esse mundo de maravilha que sua clarividência
nos descortina.
Não posso deixar de acreditar que seus contos sobre fadas não
sejam contos de fadas, mas sim reflexos de uma fase da vida que nos é estranha
por ser invisível. Ainda assim, não mais estranha do que o mundo dos insetos no
qual – espantoso, macabro, absurdo – acreditamos por ser visivelmente
“métrico”, e por essa razão não menos real do que o mundo das fadas.
Mas a fronteira entre o mundo transcendental e o “mundo
concreto” é muito menos definida e estável do que parece. O limiar que divide o
mundo numeral do fenomenal deve sua própria existência ao fato de que apenas
certas oitavas de vibração reagem sobre nosso mecanismo sensorial, de modo a
produzir as sensações de tato, audição e tudo o mais. Desse modo, o tangível, o
visível, o audível constituem o que chamamos de mundo “real”; mas até o homem
de ciência, materialista, sabe que essas palavras assim aplicadas não têm
validade, pois seria absurdo negar uma realidade igual às outras oitavas de
vibração com as quais o mecanismo sensorial deixa de estabelecer relação. A
conclusão inevitável é de que, mesmo sendo ‘irreal’ para nós, o mundo chamado
transcendental é tão verdadeiro quanto o mundo físico. É impossível, portanto,
negar que o mundo das fadas exista, tanto quanto o “fatual”.
Também devemos ter em mente que esse mundo de percepção
sensorial está sujeito a variações de tamanho devidas, em primeiro lugar, às
grandes diferenças de sensitividade dos indivíduos, e em segundo lugar pelos
apoios mecânicos, como o microfone, o telescópio, o microscópio. O ouvido do
músico pode detectar tons inaudíveis para os menos dotados; os olhos de um
pintor são capazes de discernir cores do arco íris numa cortina batida de sol, onde
outros apenas percebem o branco; o sentido do olfato de um cão abre-lhe um
mundo que seu dono ignora; os olhos da coruja atravessam a escuridão, assim
como os do abutre ultrapassam o nevoeiro; enquanto que esses dons raros, mas
autênticos de clarividência, tais como os de Dora Van Gelder sobrepujam
totalmente o limiar psicofísico.
Aquilo que estamos acostumados a nos referir como “o mundo da
realidade” deve, portanto, ser concebido como a parte do mundo transcendental,
maior e inexplorada, que a fraca e flutuante percepção sensorial é capaz de
iluminar. O limiar psicofísico torna-se então apenas o limite exterior da
irradiação que esta luz de candeeiro cria à medida que avança – pois, na
verdade, avança, ou melhor, amplia-se. Isso porque, no processo evolucionário,
o limite entre a parte transcendental e a parte apreendida terá sido empurrada
para diante na mesma direção, devido ao fato de que o número de sentidos
aumentou e de que sua capacidade funcional cresceu, enquanto seu poder também
foi enormemente ajudado pela invenção. Tudo isso constitui causa e efeito, na
expansão da própria consciência.
Pois toda evolução é, em última análise, a evolução da
consciência – uma sempre crescente percepção – e o homem é preeminentemente
“aquele que conhece”. O desejo de conhecer, mais cedo ou mais tarde, cria os
órgãos e instrumentos necessário ao conhecimento. Por outro lado, verifica-se
um espantoso fenômeno no domínio da ciência física: sai intensiva preocupação
com os fenômenos – seu esforço para descobrir a causa deles – levou diretamente
ao mundo normal, ao interior dos fenômenos. A astrofísica e a química lidam
agora com fantasmas, que na verdade são fatos. A matéria, no antigo significado
da palavra, desapareceu; o tempo e o espaço são telescopiados juntos, numa
abstração matemática; cada conclusão é rapidamente absorvida por outra, mais
etérea e fantasmal, até que, com o “princípio da incerteza” do Dr. Werner
Heisenberg, parece que alcançamos os limites do mundo métrico, pois esse
princípio significa, na verdade, que se um elemento é medido, com certeza o
outro deve permanecer incerto, destruindo portanto a velha gabolice do físico
que afirmava que, tendo em mãos todos os detalhes de um sistema, seria possível
predizer sua futura condição.
Desta maneira, a ciência, que é o conhecimento baseado na
observação exata e no correto pensamento do mundo acessível aos sentidos, é por
seu desenvolvimento o que dilacera este mundo, assim como um carvalho em
crescimento destrói o vaso que o contém. Hoje, a hipótese suplanta a hipótese
tão rapidamente que Eddington declarou na tribuna que, mesmo durante o tempo de
sua palestra, alguma nova teoria talvez suplantasse aquela que ele estava
difundindo. Isso se parece com a profecia de Ouspensky de que “a ciência deve
chegar ao misticismo”, para entrar em processo de realização. Certamente a
ciência esclareceu o assunto e preparou o caminho para que a mística se
aproximasse dos mistérios da existência, aproximação essa feita por apreensão
direta – ou aproximação emocional, se preferirem – pois o próprio Eddington
afastou o estigma de tal aproximação, declarando que certos estados de
percepção têm pelo menos um significado igual ao daquilo que chamamos de
sensações, e que entre estas deve ser encontrada a base da qual surge uma religião
espiritual – e, acrescentemos, o conto de fadas.
Estendi-me, sobre tudo isto tão longamente para que o leitor
não fique desconfiado nem rejeite o fato de que este livro é, confessadamente,
fruto do método da “apreensão direta”. Desejei demonstrar, mesmo não sendo este
o método aceito e benquisto pela ciência, que nem por isso se trata de um
método anticientífico, nem pode ser desacreditado e posto de lado. Trata-se de
um método perfeitamente válido, apesar de não ser ortodoxo. Tal como diz Dora Van
Gelder, há tantas pessoas que não acreditam no mundo mágico, e tantas outras
que desejam acreditar, e que acreditariam não fosse a errônea noção de que a
ciência “eletrocutou Papai Noel”, que seria uma pena se essas pessoas fossem
afastadas do limiar desse mundo de maravilha devido à suposição errônea de que
a ciência erigiu ali um cartaz com os dizeres: “Não ultrapassar; os
transgressores serão punidos”. Esse cartaz não existe.
Eddington não encontra melhor nome para o fundamento ou base
de todos os fenômenos do que “matéria mental”, porque só é apreensível pela
mente e forma uma coisa só com a sua natureza. Mas a mente implica consciência,
e a consciência, até onde nossa experiência nos ensina, é atributo de uma
pessoa ou de um ser – uma condição de existência. Portanto, esse vasto setor da
vida, do qual a ciência reserva para si um pequeno segmento – aquela parte com
que se pode lidar matematicamente – temos liberdade para considerá-lo povoado
de seres – até mesmo de fadas. Se preferirmos, de tronos, de dominações, de
principados, de potestades, de querubins e de serafins – e a ciência não terá
poder para nos impedir.
Neste livro, Dora Van Gelder afirma que o amor, a vontade e a
inteligência entram em todas as operações da natureza que uma ciência materialística
nos ensinou a considerar simplesmente mecanicista e nos apresenta uma
hierarquia de seres que são os instrumentos dessas operações. Filosoficamente,
essa visão do universo poderia ser chamada de animista, e nada há de novo
nisso. Ela tem uma base mais sensata do que qualquer teoria mecanicista, porque
ambas são inevitavelmente dualísticas e transgridem o princípio da necessária
uniformidade. Não temos nenhum dado para aceitar o movimento como um
princípio fundamental do mundo, e se é impossível admitir por trás dos palcos
da criação do mundo um motor mecânico inconsciente, então é necessário
considerar o mundo como algo vivo e racional. Pois uma ou outra dessas duas
coisas deve ser verdadeira: ou é mecânica e morta – “acidental” – ou é vida,
animada. Não pode haver nada morto na natureza viva e não pode haver nada vivo
numa natureza que é morta no sentido de que é sem consciência. O “materialismo
monístico” é uma contradição em termos; o materialismo só pode ser dualístico.
Dora Van Gelder foi criada no Oriente, onde o visível e o
invisível se superpõem e se interpenetram de tal maneira e até um ponto
estranho e incrível para os hábitos ocidentais de pensamento. Seus pais eram dotados
do mesmo poder de clarividência que ela possuía, e em sua tenra infância ficou
sob a tutela de C.W. Leadbeater, o famoso ocultista. As maravilhas que narra
aqui, portanto, não lhe pareciam absolutamente extraordinárias, pois faziam
parte do conhecimento comum e da experiência daqueles com os quais conviveu e
que mais amou; e durante muito tempo ela viveu sob a ilusão de que essa
“segunda visão” era uma faculdade que todos possuíam.
O folclore de todas as nações é rico em criaturas do ar e da
água, que são induzidas, pelo amor de um mortal, a tomar a forma humana e a
sujeitar-se à experiência humana, ao mesmo tempo em que mantém contato com o
seu mundo e com os habitantes desse mundo. A cosmoconcepção teosófica também
sanciona a ideia de que um mebro da evolução Deva possa alguma vez, pelo
interesse de uma experiência ou desenvolvimento especial, encarnar-se entre os
homens. Tão absurda quanto essa ideia possa parecer ao pensador convencional,
esta é a única ideia que, no meu parecer, pode de algum modo explicar Dora Van
Gelder. Por mais que eu tente, não consigo dramatizá-la como tendo incorrido
nessa evolução ascensional, perigosa, lenta, dolorosa, desde o animal até o
homem, que é, de forma tão evidente, o atalho da origem humana que o animal
imperfeitamente desenvolvido continua a ver com seus olhos humanos e que se
atrai no pensamento e na ação. Para todos estes, Dora é como Ariel para
Caliban. Não que lhe faltem simpatia e compreensão: ela as tem. Mas sentimos
que é justamente para possuí-las que ela assumiu uma aparência carnal neste
áspero mundo de sonhos corrompidos. Não preciso apresentar sua atitude
verdadeira e habitual e seu ponto de vista, porque até ofuscam pela clareza de
seus escritos. Seu livro News from Nowhere é iluminado por uma luz deslumbrante
por sua intensidade; nele, vibra uma alegria quase perturbadora na sua
jucundidade, e revela uma fé na Grande Beneficência que é quase mais
“incondicionalmente incondicional” do que a fé dos mais fiéis. Estas coisas
irrompem através da sequência de sua narrativa sobre a história natural do país
das fadas como a luz do Sol cortando uma nuvem. O livro inteiro, apesar de
falhar por vezes devido às hesitações perceptíveis na narrativa da escritora, e
ao andar como um pedestre ao qual procurou disciplinar seus pés dançantes, está
saturado por uma beleza élfica, “rica e estranha”. Não posso imaginar de que
maneira o leitor cético será capaz de resistir a essa divina invasão.
É um livro cheio de “conhecimento do coração”, pois afirma
coisas em que o coração forçosamente deve acreditar: a unidade da vida, o
domínio do amor, a existência de “um bem para todos nós”, a despeito de toda
espécie de aparência maligna.
Não posso prestar-lhe mais elevado louvor do que dizer que o
seu livro é como a infância. Que os leitores se integrem, portanto,
enquanto o lerem, na infância.
Claude Bragdon
Do Livro: O Mundo Real das Fadas - Dora Van Gelder
Editora Pensamento
Tradução: Isa Silveira Leal
Digitação e Voz: Leony Nogueira.
Por favor mantenha todos os créditos.
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