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10 de maio de 2021

PREFÁCIO - O MUNDO REAL DAS FADAS

 



Gravação em áudio - Soundcloud


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PREFÁCIO

 

Se me perguntarem: “Você acredita em fadas?” – eu só posso responder que acredito em Dora Van Gelder, o que equivale a uma afirmativa, baseada no princípio de que as coisas iguais às mesmas coisas são iguais entre si. Pois ela é Ariel, ela é Puck, ela é “um espírito e, no entanto, é também uma mulher”. Quase sempre, enquanto a ouço falar sobre fadas, minha inteligência puramente racional,  medida-padrão nesta parte tridimensional do mundo, parece que me abandona, pois é inadequada para esse mundo de maravilha que sua clarividência nos descortina.

 

Não posso deixar de acreditar que seus contos sobre fadas não sejam contos de fadas, mas sim reflexos de uma fase da vida que nos é estranha por ser invisível. Ainda assim, não mais estranha do que o mundo dos insetos no qual – espantoso, macabro, absurdo – acreditamos por ser visivelmente “métrico”, e por essa razão não menos real do que o mundo das fadas.

 

Mas a fronteira entre o mundo transcendental e o “mundo concreto” é muito menos definida e estável do que parece. O limiar que divide o mundo numeral do fenomenal deve sua própria existência ao fato de que apenas certas oitavas de vibração reagem sobre nosso mecanismo sensorial, de modo a produzir as sensações de tato, audição e tudo o mais. Desse modo, o tangível, o visível, o audível constituem o que chamamos de mundo “real”; mas até o homem de ciência, materialista, sabe que essas palavras assim aplicadas não têm validade, pois seria absurdo negar uma realidade igual às outras oitavas de vibração com as quais o mecanismo sensorial deixa de estabelecer relação. A conclusão inevitável é de que, mesmo sendo ‘irreal’ para nós, o mundo chamado transcendental é tão verdadeiro quanto o mundo físico. É impossível, portanto, negar que o mundo das fadas exista, tanto quanto o “fatual”.

 

Também devemos ter em mente que esse mundo de percepção sensorial está sujeito a variações de tamanho devidas, em primeiro lugar, às grandes diferenças de sensitividade dos indivíduos, e em segundo lugar pelos apoios mecânicos, como o microfone, o telescópio, o microscópio. O ouvido do músico pode detectar tons inaudíveis para os menos dotados; os olhos de um pintor são capazes de discernir cores do arco íris numa cortina batida de sol, onde outros apenas percebem o branco; o sentido do olfato de um cão abre-lhe um mundo que seu dono ignora; os olhos da coruja atravessam a escuridão, assim como os do abutre ultrapassam o nevoeiro; enquanto que esses dons raros, mas autênticos de clarividência, tais como os de Dora Van Gelder sobrepujam totalmente o limiar psicofísico.

 

Aquilo que estamos acostumados a nos referir como “o mundo da realidade” deve, portanto, ser concebido como a parte do mundo transcendental, maior e inexplorada, que a fraca e flutuante percepção sensorial é capaz de iluminar. O limiar psicofísico torna-se então apenas o limite exterior da irradiação que esta luz de candeeiro cria à medida que avança – pois, na verdade, avança, ou melhor, amplia-se. Isso porque, no processo evolucionário, o limite entre a parte transcendental e a parte apreendida terá sido empurrada para diante na mesma direção, devido ao fato de que o número de sentidos aumentou e de que sua capacidade funcional cresceu, enquanto seu poder também foi enormemente ajudado pela invenção. Tudo isso constitui causa e efeito, na expansão da própria consciência.

 

Pois toda evolução é, em última análise, a evolução da consciência – uma sempre crescente percepção – e o homem é preeminentemente “aquele que conhece”. O desejo de conhecer, mais cedo ou mais tarde, cria os órgãos e instrumentos necessário ao conhecimento. Por outro lado, verifica-se um espantoso fenômeno no domínio da ciência física: sai intensiva preocupação com os fenômenos – seu esforço para descobrir a causa deles – levou diretamente ao mundo normal, ao interior dos fenômenos. A astrofísica e a química lidam agora com fantasmas, que na verdade são fatos. A matéria, no antigo significado da palavra, desapareceu; o tempo e o espaço são telescopiados juntos, numa abstração matemática; cada conclusão é rapidamente absorvida por outra, mais etérea e fantasmal, até que, com o “princípio da incerteza” do Dr. Werner Heisenberg, parece que alcançamos os limites do mundo métrico, pois esse princípio significa, na verdade, que se um elemento é medido, com certeza o outro deve permanecer incerto, destruindo portanto a velha gabolice do físico que afirmava que, tendo em mãos todos os detalhes de um sistema, seria possível predizer sua futura condição.

 

Desta maneira, a ciência, que é o conhecimento baseado na observação exata e no correto pensamento do mundo acessível aos sentidos, é por seu desenvolvimento o que dilacera este mundo, assim como um carvalho em crescimento destrói o vaso que o contém. Hoje, a hipótese suplanta a hipótese tão rapidamente que Eddington declarou na tribuna que, mesmo durante o tempo de sua palestra, alguma nova teoria talvez suplantasse aquela que ele estava difundindo. Isso se parece com a profecia de Ouspensky de que “a ciência deve chegar ao misticismo”, para entrar em processo de realização. Certamente a ciência esclareceu o assunto e preparou o caminho para que a mística se aproximasse dos mistérios da existência, aproximação essa feita por apreensão direta – ou aproximação emocional, se preferirem – pois o próprio Eddington afastou o estigma de tal aproximação, declarando que certos estados de percepção têm pelo menos um significado igual ao daquilo que chamamos de sensações, e que entre estas deve ser encontrada a base da qual surge uma religião espiritual – e, acrescentemos, o conto de fadas.

Estendi-me, sobre tudo isto tão longamente para que o leitor não fique desconfiado nem rejeite o fato de que este livro é, confessadamente, fruto do método da “apreensão direta”. Desejei demonstrar, mesmo não sendo este o método aceito e benquisto pela ciência, que nem por isso se trata de um método anticientífico, nem pode ser desacreditado e posto de lado. Trata-se de um método perfeitamente válido, apesar de não ser ortodoxo. Tal como diz Dora Van Gelder, há tantas pessoas que não acreditam no mundo mágico, e tantas outras que desejam acreditar, e que acreditariam não fosse a errônea noção de que a ciência “eletrocutou Papai Noel”, que seria uma pena se essas pessoas fossem afastadas do limiar desse mundo de maravilha devido à suposição errônea de que a ciência erigiu ali um cartaz com os dizeres: “Não ultrapassar; os transgressores serão punidos”. Esse cartaz não existe.

 

Eddington não encontra melhor nome para o fundamento ou base de todos os fenômenos do que “matéria mental”, porque só é apreensível pela mente e forma uma coisa só com a sua natureza. Mas a mente implica consciência, e a consciência, até onde nossa experiência nos ensina, é atributo de uma pessoa ou de um ser – uma condição de existência. Portanto, esse vasto setor da vida, do qual a ciência reserva para si um pequeno segmento – aquela parte com que se pode lidar matematicamente – temos liberdade para considerá-lo povoado de seres – até mesmo de fadas. Se preferirmos, de tronos, de dominações, de principados, de potestades, de querubins e de serafins – e a ciência não terá poder para nos impedir.

 

Neste livro, Dora Van Gelder afirma que o amor, a vontade e a inteligência entram em todas as operações da natureza que uma ciência materialística nos ensinou a considerar simplesmente mecanicista e nos apresenta uma hierarquia de seres que são os instrumentos dessas operações. Filosoficamente, essa visão do universo poderia ser chamada de animista, e nada há de novo nisso. Ela tem uma base mais sensata do que qualquer teoria mecanicista, porque ambas são inevitavelmente dualísticas e transgridem o princípio da necessária uniformidade. Não temos nenhum dado para aceitar o movimento como um princípio fundamental do mundo, e se é impossível admitir por trás dos palcos da criação do mundo um motor mecânico inconsciente, então é necessário considerar o mundo como algo vivo e racional. Pois uma ou outra dessas duas coisas deve ser verdadeira: ou é mecânica e morta – “acidental” – ou é vida, animada. Não pode haver nada morto na natureza viva e não pode haver nada vivo numa natureza que é morta no sentido de que é sem consciência. O “materialismo monístico” é uma contradição em termos; o materialismo só pode ser dualístico.

 

Dora Van Gelder foi criada no Oriente, onde o visível e o invisível se superpõem e se interpenetram de tal maneira e até um ponto estranho e incrível para os hábitos ocidentais de pensamento. Seus pais eram dotados do mesmo poder de clarividência que ela possuía, e em sua tenra infância ficou sob a tutela de C.W. Leadbeater, o famoso ocultista. As maravilhas que narra aqui, portanto, não lhe pareciam absolutamente extraordinárias, pois faziam parte do conhecimento comum e da experiência daqueles com os quais conviveu e que mais amou; e durante muito tempo ela viveu sob a ilusão de que essa “segunda visão” era uma faculdade que todos possuíam.

 

O folclore de todas as nações é rico em criaturas do ar e da água, que são induzidas, pelo amor de um mortal, a tomar a forma humana e a sujeitar-se à experiência humana, ao mesmo tempo em que mantém contato com o seu mundo e com os habitantes desse mundo. A cosmoconcepção teosófica também sanciona a ideia de que um mebro da evolução Deva possa alguma vez, pelo interesse de uma experiência ou desenvolvimento especial, encarnar-se entre os homens. Tão absurda quanto essa ideia possa parecer ao pensador convencional, esta é a única ideia que, no meu parecer, pode de algum modo explicar Dora Van Gelder. Por mais que eu tente, não consigo dramatizá-la como tendo incorrido nessa evolução ascensional, perigosa, lenta, dolorosa, desde o animal até o homem, que é, de forma tão evidente, o atalho da origem humana que o animal imperfeitamente desenvolvido continua a ver com seus olhos humanos e que se atrai no pensamento e na ação. Para todos estes, Dora é como Ariel para Caliban. Não que lhe faltem simpatia e compreensão: ela as tem. Mas sentimos que é justamente para possuí-las que ela assumiu uma aparência carnal neste áspero mundo de sonhos corrompidos. Não preciso apresentar sua atitude verdadeira e habitual e seu ponto de vista, porque até ofuscam pela clareza de seus escritos. Seu livro News from Nowhere é iluminado por uma luz deslumbrante por sua intensidade; nele, vibra uma alegria quase perturbadora na sua jucundidade, e revela uma fé na Grande Beneficência que é quase mais “incondicionalmente incondicional” do que a fé dos mais fiéis. Estas coisas irrompem através da sequência de sua narrativa sobre a história natural do país das fadas como a luz do Sol cortando uma nuvem. O livro inteiro, apesar de falhar por vezes devido às hesitações perceptíveis na narrativa da escritora, e ao andar como um pedestre ao qual procurou disciplinar seus pés dançantes, está saturado por uma beleza élfica, “rica e estranha”. Não posso imaginar de que maneira o leitor cético será capaz de resistir a essa divina invasão.

 

É um livro cheio de “conhecimento do coração”, pois afirma coisas em que o coração forçosamente deve acreditar: a unidade da vida, o domínio do amor, a existência de “um bem para todos nós”, a despeito de toda espécie de aparência maligna.

 

Não posso prestar-lhe mais elevado louvor do que dizer que o seu livro é como a infância. Que os leitores se integrem, portanto, enquanto o lerem, na infância.

 

Claude Bragdon


Do Livro: O Mundo Real das Fadas - Dora Van Gelder

Editora Pensamento

Tradução: Isa Silveira Leal

Digitação e Voz: Leony Nogueira. 

Por favor mantenha todos os créditos.




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